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A afro-brasilidade em A lei do santo: contos, livro de Muniz Sodré, editado pela Malê.


Além de notório pesquisador acadêmico sobre a condição do afro-brasileiro no âmbito das territorialidades, Muniz Sodré é um brilhante produtor de ficção que aborda a condição do sujeito afro-brasileiro no contexto nacional.

Seus contos criam e recriam o universo da afro-brasilidade o qual se desdobra internamente em diversos níveis de representação literária, demonstrando a complexa, instável, contraditória e rica teia de sentidos que é a formação identitária de um sujeito. Suas histórias são repletas de signos criativos e densos, que ao mesmo tempo revelam uma familiaridade incomum com a sua condição étnica e cultural afro-negra e um conhecimento dos outros sujeitos não identificados como negros em um nível de compreensão da alteridade quase mediúnico, demonstrando um saber profundo sobre as fragilidades humanas em suas relações identitárias. Produto exemplar dessa leitura é o livro de contos A lei do santo, revelador de histórias expressivas de um conteúdo fortemente crítico da afro-brasilidade as quais subvertem a ordem convencional das leis judaico-cristãs – formadoras habituais da religiosidade da população brasileira.

Essa obra de Sodré surge como a possibilidade de repensar o local em que vive, se forma e se transforma o sujeito negro nesse contexto, com o objetivo de demarcar e legitimar o território de atuação do pensamento, da religiosidade e da cultura afro-negro-brasileira, aos olhos de um eu enunciador comprometido com as suas afirmações identitárias.


Em A lei do santo a ancestralidade atravessa e ultrapassa o tempo das narrativas, nas quais os personagens são constituídos como ícones da memória de um povo, por meio de desdobramentos meio fantásticos, meio mágicos, na revelação de segredos e verdades ofuscadas em instantes de epifania saborosíssimos. Tendo o mistério e o oculto como climas constantes, realizam-se e cultuam-se os diálogos com os orixás, os quais se desdobram e se constroem em vínculos entre espaços e personagens e se descortinam em ações, ideias e crenças do sujeito afro-brasileiro. Cada história revela um segredo, levando consigo abordagens diferenciadas sobre a relação de um personagem com o mundo ou com a sua ancestralidade. Além disso, cada personagem negro tem um protetor, o chamado santo de cabeça. E, em sua maioria, cada lugar por onde passam esses personagens se configura como um terreiro de Umbanda ou de Candomblé, locais da cosmogonia afro-brasileira.


Como não podia ser diferente, o livro inicia-se com um dos mais densos e representativos contos de todo o projeto literário de Sodré. “Purificação” é uma história na qual uma das personagens passa por um pesadelo que reflete seus medos, oriundos da opressão e descaso sociais que envolvem os moradores pobres e negros de uma favela, iniciando-se com a destruição desta última, na qual, em meio aos escombros, se passava o extermínio da população pobre e de maioria negra ou mestiça. Nesse contexto angustiante para os moradores daquele lugar, a personagem principal está na busca de encontrar uma escapatória, mesmo embaixo de escombros, como vítima de caçadores brancos, pessoas de classe média pertencentes à parcela “produtiva” da população, segundo o narrador. E em meio à barbárie que ali acontecia (assassínios de pessoas pobres, mestiças e negras), a personagem principal desperta-se do sono, provocando no leitor um momento de surpresa, em que o narrador apresenta o verdadeiro cenário em que vivia o protagonista, ou seja, a mesma favela do pesadelo, mas “sem” os ataques e massacres que lá se passaram. Por outro lado, o narrador surpreende o leitor novamente, quando descreve a cena em que policiais armados e acompanhados de cães pit-bull brancos subiam a ladeira em direção ao barraco das gentes pobres daquele lugar.


O ambiente de terror do protagonista do conto, indivíduo morador daquela favela, estabelece uma ligação com o “real” humano, ao representar uma sociedade caracterizada pela mercantilização das religiões cristãs protestantismo e catolicismo, fato cada vez mais comum para a sociedade brasileira em suas diversas camadas desde as últimas décadas do século XX.


Na obra, ainda, o narrador denuncia, por meio de alegorias e metáforas, o preconceito étnico-racial, componente dos “novos ideais” de pureza fenotípica e atmosfera na qual o conto acontece. Como exemplo disso, aborda o ato autorizado pelo governo de importação de cães norte-americanos brancos, treinados para atacar somente pessoas negras, a “proibição” de essas pessoas ocuparem cargos públicos e ainda o assassínio dessa parcela da população legitimado pelas esferas jurídicas e governamental e justificado na conseguinte realização de transplantes de órgãos “em nome de Deus e da salvação cristã”, em ações treinadas e sincronizadas por uma guarda branca em conluio com as “pequenas unidades médicas”, as quais lhes retiravam os órgãos para colocá-los em doentes brancos e abastados, integrantes da “atual esfera produtiva da sociedade”, segundo o narrador. Nesse ambiente do conto, refletindo o contexto de uma sociedade cristã e ortodoxa preconceituosa e segregacionista, é instaurado o imperialismo econômico, difundido pela mídia em todas as suas instâncias que “fala muito por não ter nada a dizer”. Porém, esse ambiente de pesadelo que envolve o sono do protagonista não corresponde a ideias fora de uma realidade convencional, mas sim a um estado de espírito gerado pela apreensão originária da tirania de um mundo preconceituoso e violento que envolve a vida da personagem.


Os ambientes em que se constroem as narrativas de A lei do santo permitem a transcendência dos elementos cotidianos e buscam uma linha de trânsito entre o sagrado, o profano e os fatos da realidade convencional, em que o primeiro se afirma. Na obra, “a lei” dita o ritmo, os significados e os objetivos de cada história. Em tese, a semântica da lei se faz justificar pela presença dos signos afro-brasileiros e pela autoaceitação do eu-enunciador em cada ambiente em que as histórias acontecem. O conjunto de contos da obra de Muniz Sodré apresenta unicidade ao promover uma tessitura de significados, em que uma história se une a outra de forma metatextual por meio do mesmo elemento articulador: “a lei do santo”.


Rodrigo Pires de Paula é Professor de Literatura, Produção de Textos e Língua Portuguesa e Mestre em Estudos Literários: Teoria da Literatura (UFMG).


“Muniz Sodré de Araújo Cabral é um dos mais destacados intelectuais brasileiros contemporâneos. Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ. Tem significativos estudos publicados no Brasil e no exterior. Suas pesquisas abordam com propriedade o campo das produções culturais brasileiras, vistas a partir das relações, muitas vezes tensas, com as condições sociais vividas pela grande parte da população, em especial a parcela afrodescendente.” (Rodrigo Pires de Paula)


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